A Dinamarca é um dos países mais admirados do mundo. Isso porque, além de ser um país rico, também ostenta uma ótima colocação no Índice de Desenvolvimento Humano: está na 15ª posição!
O IDH é calculado levando-se em conta três pontos:
– a renda per capita ( ali é de US$ 32 mil, já a média mundial é de US$ 10 mil)
– o acesso à educação e
– a expectativa de vida ( ali é 80 anos, já a média mundial é de 70,5 anos)
Marius, como não era humano, não teve a mesma sorte da média dos dinamarqueses. Com 18 meses de vida, ele, que é uma girafa, foi sacrificado pelo zoológico de Copenhagen. Não só isso. Foi também dissecado em público e serviu como alimento de animais carnívoros.
No meio do rebuliço causado pela notícia de que Marius seria sacrificado (e, em seguida, o próprio sacrifício), as autoridades zoológicas tentavam justificar sua decisão.
Em entrevista à “Time”, o diretor científico do zoológico, Bengt Holst, disse que Marius fazia parte de um programa de reprodução europeu que interditava cruzamentos endogâmicos como forma de prevenir problemas de saúde nos animais.
“O objetivo do programa de melhoramento genético é ter uma população tão saudável quanto possível, não só para o agora, mas para o futuro”, disse Holst. “À medida que os genes deste girafa estão super representados neste programa de melhoramento, o Programa de Reprodução Europeia para Girafas concordou que o zoológico deveria sacrificá-lo.”
Marius era saudável. O problema não era que ele desenvolveria uma doença por ser fruto de cruzamentos endogâmicos (e que, portanto, o zoológico de Copenhagen estava prevenindo um sofrimento futuro do animal). Não. A questão é que Marius –que carregava um estoque genético já repetido à exaustão no circuito reprodutivo de animais de zoológicos europeus– aumentaria a probabilidade do aparecimento de doenças genéticas nesse circuito, caso fizesse parte dele.
Alternativas foram dadas: por que não castrar o animal? Por que não doá-lo a outro zoológico europeu?
Holst, ainda à “Times”, tentou mostrar que, em toda aquela situação, as autoridades zoológicas, afinal, estavam apenas buscando o bem comum.
Administrar contraceptivos químicos causaria efeitos colaterais, como falha nos rins. Já castrar o animal diminuiria “sua qualidade de vida”.
“Nossa maior objetivo é garantir que os animais tenham a melhor vida que puderem ter enquanto eles viverem, seja 20 anos ou dois anos. A reprodução e manter laços parentais são especialmente importantes para o bem-estar de uma girafa. Não queremos interferir nisso”, disse Holdt à “Times”.
Em outras palavras, o diretor científico estava resguardando Marius de uma vida miserável, já que é sabido que os filhotes nascidos em zoológicos são mantidos na instituição para sempre, para assim criarem uma imensa e unida linha familiar.
Não, claro que não.
Animais criados e nascidos em zoológicos tendem a ir para outros zoológicos e nunca mais ver seus progenitores. Além disso, se a relação pais-filhote é assim tão importante, por que não resguardar a mãe e o pai de Marius de sua morte?
A castração de machos é mais simples do que a de fêmeas. Se o organismo da girafa for parecido com a de um boi, o que não podemos afirmar, mas tende a ser provável, a castração poderia ser feita com um alicate de castração (também conhecido como “burdizzo”). Nessa técnica, chamada angiotripsia, “a circulação para o testículo é interrompida com auxílio de um “alicate”, causando a degeneração do mesmo. O inconveniente é que, quando mal feita, há necessidade de se refazer a castração.” (cito daqui)
Por que não doar Marius para outro zoológico? Ainda segundo a “Times”, foram dois os zoológicos que se ofereceram para receber a girafa. A oferta de um foi recusada porque o zoo, que era britânico, já tinha entre suas girafas a carga genética de Marius em número suficiente. Assim, Marius, girafa egoísta, estaria tomando o lugar de outro animal cujos genes seriam mais bem aproveitados pelo circuito de reprodução, venda e troca de animais. O segundo zoológico, sueco, não deu garantias de que Marius não seria vendido mais tarde.
A “National Geographic” reporta que outra instituição, da Noruega, também se dispôs a aceitar Marius, como já havia feito com outras girafas do zoológico de Copenhagen. Não encontrei a justificativa dada pelo zoo para negar a oferta.
Holst convence a reportagem da “Times”, que termina o texto com uma frase pujante do diretor: “Se nós queremos levar a ciência a sério, não podemos ser levados pela emoção.”
Quem acompanha o assunto sabe que esse tipo de colocação não é rara. Pessoas que defendem causas animais normalmente são desmerecidas como descerebrados movidos pela ignorância emocional. Como se a ciência fosse feita sem emoção e descolada de um contexto social (Stephen Jay Gould manda lembranças).
Só que não é bem assim. Marius poderia ser mantido no zoológico, mas como ônus. Não compensava ter um animal apenas como peça de entretenimento –quando pode-se dar lugar a outro que seja peça de entretenimento E matriz reprodutiva.
DISSECAÇÃO
Então, na manhã do dia 9 de fevereiro, Marius foi morto com um tiro na cabeça após receber seu café da manhã favorito: pão de centeio.
Depois, foi levado aos cuidados de uma multidão que assistiu, com suas crianças, o animal sendo dissecado. Foram três horas de demonstração, como reporta a National Geographic.
No livro “The Beast & Sovereign”, Jacques Derrida analisa o significado da palavra “autópsia”, tomando como ponto de partida a dissecação de um elefante para o rei Luís 14 em 1681. Seria impossível reproduzir todo o argumento de Derrida aqui. Vou apenas sublinhar alguns pontos.
O cerne do argumento do filósofo é que o conhecimento teórico, como posto hoje na maior parte dos casos, é um conhecimento baseado no olhar, em uma experiência óptica. Além disso, fomos criados e reproduzimos um processo de produção de conhecimento pautado por uma situação de soberania: “O conhecimento é soberano, é de sua essência querer ser livre e todo-poderoso, para ter a certeza de poder e de ter, para ter a posse e o domínio de seu objeto.” [Knowledge is sovereign; it is of its essence to want to be free and all- powerful, to be sure of power and to have it, to have possession and mastery of its object]
Meeting of the French Academy of Sciences; Christiaan Huygens at the window on the left, Louis Gayart dissecting (1714, Sébastien Le Clerc) |
A dissecação exemplifica essa lógica. Ali, está posta de forma óbvia a submissão do dissecado frente ao sujeito da ação.
Essa maneira de estruturar o conhecimento e de saciar a curiosidade, a partir da dominação e pela ação do olhar, não muda com a Revolução Francesa, mostra Derrida. A mudança não é tanto no modelo de produzir conhecimento, mas sim, em quem será o sujeito que ocupa o posto da soberania/que vê (deixa de ser o rei, passa a ser “o povo”).
Por isso o argumento, tantas vezes ouvido, de que o zoológico em si é um local de conhecimento. Afinal, o que se faz em um ambiente desse? Se vê. O que se vê? Animais dominados.
(Pequenos quiz. Onde podemos aprender mais sobre chimpanzés: lendo um dos livros da primatóloga Jane Goodall, que durante anos acompanhou esses animais em liberdade na Tanzânia, ou indo a um zoológico?)
Também por isso que a autópsia de Marius foi colocada como um momento de produção e transmissão de conhecimento incomparável pelas autoridades zoológicas.
O porta-voz do zoo, Tobias Stenbaek Bro, assim disse à “Wired”: “Estou muito orgulhoso. Acho que demos às crianças um enorme conhecimento sobre a anatomia de uma girafa, algo que não poderíamos fazer com uma foto”.
A questão é: é esse modelo de transmissão de conhecimento –que anda de mãos dados com a dominação e que é exemplificado ao máximo em zoológicos– que queremos perpetuar?
Em tempo: a eutanásia de animais com genética indesejada é comum em zoológicos. No mesmo dia da morte de Marius, seis leões foram sacrificados no Reino Unido.