Quem afinal reclama do jogo do bicho?, pergunta cronista do Rio

 

TÍTULO Carta do Rio 
AUTOR  Orlando
DATA  1 de abril de 1895
LOCAL  Rio de Janeiro, Rio de Janeiro
FONTE  O Estado de S.Paulo
REPOSITÓRIO

Acervo Estadão

DESCRIÇÃO

Permeada de ironia, crônica fala sobre os efeitos do jogo do bicho no Rio de Janeiro e pergunta: quem afinal está reclamando contra o jogo? 

“Está em crise a bicharia do Jardim Zoologico.
A moralidade publica, uma coisa que aparece poucas vezes; mas que quando se apresenta tem sempre a pretensão de impor a sua vontade, está revoltada contra o jogo nos bichos do referido jardim e de toda parte surgem protestos e reclamações contra a bicharia e tão veementes que se os tais bichos, fossem de carne e osso em vez de serem pintados um quadro tosco, seria para receiar um novo S. Bartholomeu no aprazível bairro de Villa Isabel.
Parece, pela indignação dos jornais e pelos protestos das famílias, que o jogo nesses animais tomou as proporções de uma calamidade publica e tanto que a Intendência trata de, com a maior brevidade, fazer secar a fonte de onde provém tantos males.
Jogo é jogo e está convencionado que não é de boa moral defender esse meio de se perder ou de se ganhar dinheiro; mas entre nós, tudo se passa de um modo verdadeiramente extraordinário.
Em primeiro lugar, o jogo dos bichos, verdadeira especulação, foi autorizado por todos os poderem competentes, e assim tem continuado até que agora os mesmos poderes tratam de o suprimir.
O que esperavam, porém, os poderes públicos, Municipalidade e Polícia, quando permitiram o jogo dos bichos? A julgar pela atitude que agora tomaram perante esse jogo, parece que eles supunham ou que o concessionário não usaria da concessão ou que o público não se apaixonaria por esse divertimento.
Ora, quer numa, quer em outra hipótese, se os poderes referidos tivessem miolo em vez de minhocas no cérebro, a primeira e única coisa que deveriam fazer era não permitir tal jogo e mandar o dono do Jardim Zoológico pentear os muitos macacos que lá tem expostos.
(…)
Pelo que se refere ao público, a minha confusão acerca do seu procedimento é ainda maior e deixa-se positivamente perplexo.
É certo, é indubitável, está provado, que há imensas reclamações contra esta espécie de jogo. Mas quem reclama?
São aqueles que jogam e que fazem diariamente a romaria ao Jardim Zoologico? Não é de crer que sejam esses os reclamantes (…) Excluídos portanto os que jogam, ficam como reclamantes os que não jogam, os que compõem a opinião, a parte sã da sociedade, os sacerdotes da Moral (…)
Estes porém, que reclamam, não por si, mas em nome dos bons costumes, alegam que colegiais, pequenos caixeiros e irresponsáveis deixam de cumprir os seus deveres para se entregarem de corpo e alma aos azares do avestruz e do porco da Índia.
Ainda mais: senhoras donas de casa, boas menagères até agora, seduzidas pelo palpite no Gorila, têm metido mão criminosa no dinheiro das compras e suprimido alguns temperos da panela para se habilitarem na jogatina do Zoológico.
Ora, todas essas alegações reunidas como a num libelo formidável ecoaram no coração das autoridades e pode-se já ter como certo que os bichos poderão servir para qualquer coisa, menos para dar ou tirar dinheiro a alguem.
Mas se acabam com um jogo tão perigoso, tão pernicioso, tão perversor da mocidade estudiosa e caixeral que parece não ter pais nem patrões que lhes puxem as orelhas e tão pertubador do pot-au-feu das famílias remediadas, o que é que vai daqui em diante fazer toda essa gente viciada e viciosa?
Os homens vão para o dados e para roleta e as mulheres e as crianças para o bilhetinho das loterias diárias, mais baratos e mais sedutores. Com 800 réis, tira-se às vezes 4 contos.
Que pechincha e que moralidade!”

 

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