Este é um trecho da dissertação de mestrado “Rastros: A Constituição do Zoológico de São Paulo na Imprensa Paulistana”, defendida na Universidade Estadual de Campinas em 2015 por Luísa Pessoa.
É provável que a construção de um zoológico público em São Paulo tivesse ocorrido anos antes se os elogios a esse tipo de empreendimento não fossem eclipsados, a partir de 1895, por notícias sobre o “imoral”, “escandaloso” e “da pior espécie” jogo do bicho no Rio de Janeiro. A prática, segundo o historiador Felipe Magalhães (2011), teria começado em julho de 1892 e vale a pena ser recordada.
Em setembro de 1890, Drummond havia pedido à Câmara Municipal do Rio de Janeiro autorização para explorar dentro do zoológico jogos lícitos. Esta seria uma forma de auxiliar o pagamento das despesas do zoo, que vinha então sendo sustentado pelo valor das entradas e por uma subvenção anual do governo de 10 contos de réis (Magalhães, 2011:32). Em outubro de 1890, as autoridades deram seu aval à ideia, posta em prática, ao lado de vários outros “divertimentos”, como o boliche, em julho de 1892, conforme descreve Magalhães:
Ao comprar o ingresso de entrada para o Jardim Zoológico, o visitante passaria a receber um ticket. No bilhete estaria impressa a figura de um animal. Pendurada num poste a cerca de 3 metros de altura, próxima ao portão de entrada do parque, havia uma caixa de madeira. Dentro desta ficava escondida a gravura de um animal, escolhida pelo Barão [de Drummond] dentre uma lista de 25 bichos que ia da avestruz à vaca, passando pela borboleta e pelo jacaré. Neste domingo [3 de julho de 1892] às 5 horas da tarde a caixa seria aberta pela primeira vez e todo o público presente poderia afinal, descobrir o animal encaixotado e saber se teria direito ao prometido prêmio de 20$000, vinte vezes o valor gasto com a entrada para o zôo. Na hora marcada, o Barão dirigiu-se até o poste, revelou a avestruz e fez a alegria de 23 sortudos visitantes (2011:20).
Em poucos dias, a venda de tickets para o jogo extrapolou os limites do zoológico (e a visita ao parque) e se espalhou pela capital, “contando com o apoio de pequenos comerciantes e de um imenso exército de vendedores ambulantes que percorriam as ruas da cidade vendendo a sorte e o azar” (Magalhães, 2011:37). Antes permitido pela municipalidade, o jogo passou a ser visto já em 1895 de forma pejorativa. O Estado de S. Paulo, em artigo assinado pelo nome de Orlando, resumiu de forma bem-humorada a situação:
Está em crise a bicharia do Jardim Zoologico.
A moralidade publica, uma coisa que aparece poucas vezes; mas que quando se apresenta tem sempre a pretensão de impor a sua vontade, está revoltada contra o jogo nos bichos do referido jardim e de toda parte surgem protestos e reclamações contra a bicharia (…)
Parece, pela indignação dos jornais e pelos protestos das famílias, que o jogo nesses animais tomou as proporções de uma calamidade pública e tanto que a Intendência trata de, com a maior brevidade, fazer secar a fonte de onde provém tantos males.
Jogo é jogo e está convencionado que não é de boa moral defender esse meio de se perder ou de se ganhar dinheiro; mas entre nós, tudo se passa de um modo verdadeiramente extraordinário.
Em primeiro lugar, o jogo dos bichos, verdadeira especulação, foi autorizado por todos os poderes competentes, e assim tem continuado até que agora os mesmos poderes tratam de o suprimir.
O que esperavam, porém, os poderes públicos, Municipalidade e Polícia, quando permitiram o jogo dos bichos? A julgar pela atitude que agora tomaram perante esse jogo, parece que eles supunham ou que o concessionário não usaria da concessão ou que o público não se apaixonaria por esse divertimento.
Ora, quer numa, quer em outra hipótese, se os poderes referidos tivessem miolo em vez de minhocas no cérebro, a primeira e única coisa que deveriam fazer era não permitir tal jogo e mandar o dono do Jardim Zoológico pentear os muitos macacos que lá tem expostos.
(…)
É certo, é indubitável, está provado, que há imensas reclamações contra esta espécie de jogo. Mas quem reclama?
São aqueles que jogam e que fazem diariamente a romaria ao Jardim Zoologico? Não é de crer que sejam esses os reclamantes (…). Excluídos portanto os que jogam, ficam como reclamantes os que não jogam, os que compõem a opinião, a parte sã da sociedade, os sacerdotes da Moral (…)
Estes porém, que reclamam, não por si, mas em nome dos bons costumes, alegam que colegiais, pequenos caixeiros e irresponsáveis deixam de cumprir os seus deveres para se entregarem de corpo e alma aos azares do avestruz e do porco da Índia.
Ainda mais: senhoras donas de casa, boas menagères até agora, seduzidas pelo palpite no Gorila, têm metido mão criminosa no dinheiro das compras e suprimido alguns temperos da panela para se habilitarem na jogatina do Zoológico.
Ora, todas essas alegações reunidas como a num libelo formidável ecoaram no coração das autoridades e pode-se já ter como certo que os bichos poderão servir para qualquer coisa, menos para dar ou tirar dinheiro a alguem.
Mas se acabam com um jogo tão perigoso, tão pernicioso, tão perversor da mocidade estudiosa e caixeral que parece não ter pais nem patrões que lhes puxem as orelhas e tão perturbador do pot-au-feu das famílias remediadas, o que é que vai daqui em diante fazer toda essa gente viciada e viciosa?
Os homens vão para os dados e para roleta e as mulheres e as crianças para o bilhetinho das loterias diárias, mais baratos e mais sedutores. Com 800 réis, tira-se às vezes 4 contos.
Que pechincha e que moralidade! (Orlando, O Estado de S.Paulo, 1 abr. 1895)
A pergunta de Orlando sobre a autoria das críticas ao jogo do bicho foi também respondida por uma coluna de Coelho Neto, que, do Rio de Janeiro, disse aos paulistas para agradecerem a não existência de um zoológico na cidade. Segundo Neto, São Paulo tinha a sorte de ainda estar livre do jogo do bicho, passatempo nocivo que desviava as mentes dos serviçais e das mulheres de suas tarefas cotidianas.
São Paulo não tem um jardim zoológico…é caso para os paulistas mandarem rezar missas em ação de graças, porque podem contar com os criados e com os gêneros para o almoço. Nós, fluminenses, andamos pagando culpas e poules.
O nosso cozinheiro, preocupado com a bicharia, queima o assado, salga a sopa e, em vez de deitar cebolas no guizado, deita-lhe talas de canella e cravo do Ceylão levando a cebola para a baba de moça e tudo isso por causa do gallo ou da cobra.
A lavadeira troca-nos as camizas, obriga-nos a usar collarinhos hirtos (…), as vezes por um simples sonho que a traz preocupada -o elefante, o marreco ou outro bicho qualquer. E há conflitos nos bondes por causa do coelho, cabeças quebradas por causa do urso, arranhaduras por causa do gato.
Vivemos como no tempo em que os animais dominavam e o barão empanturra-se de dinheiro e o vício cresce escandalosamente porque até feiticeiros andam a rezar a Santo Onofre para que o santo lhes diga, em segredo, qual é o bicho que dá.
A polícia descobriu uma casa de tolerância onde adeptos faziam preces, seduzindo fetoches para que lhes desses bons palpites -os taes fetoches, ao que parece, melindrados por serem confundidos com tavolageiros guiaram um delegado à capela dos crentes e o trunfo saiu às avessas à pobre gente. Até senhoras conspícuas atiram-se aos bichos, mães de família exemplares, avós veneradas, tias solteironas jogam todas com fúria, esgotando os mealheiros e fazendo minguar o almoço para que sobre um carneiro para o burro.
É uma febre de animalidade que apavora. E as autoridades, impassíveis, deixam correr o jogo à revelia para que o povo não morra de tédio nesta boa terra de tristeza e de sol (Coelho Neto, Correio Paulistano, 25 mar. 1895).
A situação fez com que o prefeito do Rio de Janeiro, Furquin Werneck, pedisse ao chefe da polícia da então capital um inquérito sobre a “verdadeira calamidade e vergonha pública” que atingia a cidade, já que, a seu ver, “esse jogo (…) de nenhum modo é autorizado pelo contrato firmado pela intendência com a direção do Jardim Zoológico” (Correio Paulistano, 18 abr. 1895). O chefe de polícia respondeu afirmativamente, argumentando que jogos de azar eram proibidos pelo código penal e que aquele, em particular, tinha “produzido prejudiciais consequências reveladas todos os dias da (sic) imprensa desta cidade”. Assim, as autoridades intimaram o barão de Drummond a “imediatamente cessar o jogo” do bicho (Correio Paulistano, 20 abr. 1895).
Com o fim do jogo, em agosto de 1895, Drummond arrendou o jardim a Luiz Galvez, “famoso empresário do ramo de diversões, envolvido principalmente com frontões” (Magalhães, 2011:38). Poucos meses depois, este repassou o empreendimento para Marques, Ribeiro & Cia. Na virada do século, o zoo já estaria em outras mãos. Segundo Magalhães, neste período, “o investimento para a compra de novos animais, a manutenção dos que lá viviam e das dependências do parque ficam em segundo plano”, comparada à exploração de jogos lícitos –o boliche e o frontão (2011:38).
Em junho de 1898, um colaborador do Estado de S.Paulo visitou o zoológico do Rio de Janeiro e elogiou seu ambiente “animado e festivo”. Para ele, a situação era consequência direta da existência de jogos no zoológico –não os de azar, mas de bola e boliche–, que garantiam o dinheiro necessário para a manutenção do espaço. Dessa forma, ele logo engatou uma crítica à proibição temporária do jogo no zoológico:
Foi a tragédia do fim de um mundo, em todo o seu horror. Sem jogo, não havia dinheiro; sem dinheiro, não havia alfafa, nem milho, nem alpiste, nem farelo. E o jardim se encheu daquele choro e ranger de dentes de que fala a Bíblia. O choro era a humilde manifestação do pesar dos macacos e das aves; o ranger de dentes era a colérica e formidável lamentação dos tigres e das onças. E o que mais doía era ver os macacos, magros, pelados, com lágrimas humanas nos olhos, coçando desesperadamente o coccyz, guinchando a sua fome e a sua tortura (B., O Estado de S.Paulo, 28 jun. 1898).
A situação “festiva” do zoo do Rio de Janeiro não perdurou. Em 1903 o zoológico da cidade atravessou uma “séria crise” e pediu auxílio financeiro da Prefeitura, que negou a demanda (Magalhães, 2011:47).
As críticas ao jogo do bicho carioca não fizeram cessar os pedidos para a construção de um zoológico em SP, ainda que tenham influenciado os condicionantes para seu aval. Não foram poucas as solicitações. Em maio de 1895, por exemplo, Manoel Cardoso de Almeida e Silva, da Câmara Municipal, enviou um requerimento à comissão de Justiça propondo a fundação de um zoológico na cidade (O Estado de S.Paulo, 27 mai. 1895). Em 1899, um projeto de lei para ocupar a área da várzea do Carmo, no centro da cidade[1], previu em um dos seus artigos “reservar um lugar para a provisória exibição de animais de modo a futuramente se converter em museu zoológico da municipalidade” (O Estado de S.Paulo, 2 mai. 1899). Em agosto de 1900, o prefeito de São Paulo mandou ao presidente e aos vereadores da Câmara um requerimento de Joviano Azevedo e Victor Machado para a construção de um zoo na freguesia da Penha (O Estado de S.Paulo, 28 ago. 1900). Em setembro de 1903, foi indeferida pela Câmara Municipal a proposta feita por Margarida Álvares de Lima de vender um terreno de sua propriedade na avenida Paulista “para o estabelecimento de um jardim botânico e zoológico” (O Estado de S.Paulo, 6 set. 1903). Em junho de 1908, o mesmo jornal publicou na íntegra um projeto de lei proposto na Câmara Municipal por José Oswald para a criação de um jardim zoológico no município, na região do Butantã. No documento, onde se lê em detalhe as preocupações da época para o empreendimento, estavam explícitos os condicionantes que resultaram da experiência carioca. Por exemplo, já ficava estipulada a proibição “de jogos de qualquer natureza, ainda mesmo lícitos” no zoológico, assim como a “obrigação de ter os animais bem alimentados” (O Estado de S.Paulo, 28 jun. 1908).
Uma lei municipal “sobre a construção, uso e gozo” de um zoo no município foi assinada em junho de 1909. Tratava-se do mesmo texto proposto por José Oswald, com pequenas mudanças, como o trecho sobre a localização do parque (de uma localidade específica, o Butantã, passou a ser possível construir o zoo em qualquer ponto da cidade que obedecesse aos condicionantes impostos pela lei). A parte dos jogos foi também flexibilizada: apenas jogos ilícitos passaram a ser proibidos.
Apesar da criação desse dispositivo legal, não foi possível encontrar na imprensa referências após 1909 que fizessem menção a essa norma. Jornais que, na década de 1950, por ocasião da construção (agora sim efetiva) de um zoológico público em São Paulo, fizeram um histórico sobre as tentativas e fracassos de criar um jardim na cidade só mencionariam a lei de 1926, do prefeito Pires do Rio.
De toda forma, enquanto um zoológico não era construído, a cidade de São Paulo era visitada por circos –como Grande Circo Zoológico Europeu (1895), Circo Spinelli (1902), Grande Circo Zoológico Americano (1910 e 1919), Circo Foureaux Manetti (1917) e o circo de propriedade de Anthony Lowande[2] (1919)–, além de dispor de outras atrações zoológicas. Em dezembro de 1905, por exemplo, foi inaugurado um Museu Zoológico –de animais empalhados– na rua Florêncio de Abreu, centro da cidade. Assim descreveu o Estadão à época: trata-se de um lugar “altamente interessante e curioso” que “merece ser visitado” (O Estado de S.Paulo, 24 dez. 1905).
Em relação aos circos, o Estadão foi particularmente elogioso à temporada do Grande Circo Zoológico Americano, elevando a visita ao picadeiro a um momento de instrução. O elogio do jornal não decorria somente da exposição de animais exóticos, mas também da capacidade humana de domá-los e fazê-los performáticos ao público:
Raras vezes o nosso público pode apreciar companhia de organização semelhante, para a qual não basta um capital respeitável como o do Jardim Zoológico, mas conhecimentos amplos do ‘metier’ de modo a atrair o público com uma variedade de números que o interesse e o divirta no decorrer das funções. (…) a exposição zoológica vale um espetáculo e dos mais instrutivos, admirando ali, nas suas jaulas, elefantes, tigres, panteras, leões de vários pontos do globo, hienas, camelos e dromedários, porcos amestrados, crocodilos, pumas do Paraguai, macacos, quatis, cabras etc (O Estado de S.Paulo, 19 ago 1919).
Notas:
[1]Espaço que, nos últimos anos, segundo Aprobato Filho (2006:131), fora alvo de intensas críticas por ter se transformado em um local de acúmulo de animais mortos, entre os quais cães vítimas de bolas envenenadas que eram espalhadas pela própria Prefeitura nas ruas da cidade.
[2]Representado no Brasil por Francisco Peyres.