Este é um trecho da dissertação de mestrado “Rastros: A Constituição do Zoológico de São Paulo na Imprensa Paulistana”, defendida na Universidade Estadual de Campinas em 2015 por Luísa Pessoa.
O primeiro registro encontrado na imprensa que menciona a intenção de se construir um zoológico na cidade de São Paulo data de fevereiro de 1885. O assunto surgiu durante discussão na Câmara Municipal sobre um pedido, feito pela Associação Commercial e Agricola de São Paulo, para a concessão, pela municipalidade, de um terreno contíguo ao Jardim Público (Jardim da Luz) para a criação de um palácio da indústria, que serviria para exposições agrícolas e industriais. Em meio ao debate, o vereador Araújo Costa disse que não era alçada da municipalidade conceder logradouros públicos, mas que a Câmara poderia reencaminhar a demanda para o órgão competente, acrescentando um pedido de cessão de um terreno para um jardim zoológico no mesmo local, “Ficando assim esta importante capital com mais uma instituição de incontestável utilidade” (Correio Paulistano, 20 fev. 1885, grifo nosso).
Três anos mais tarde, é noticiada a proposta, feita por Alberto Loefgreen à Assembleia Legislativa Provincial, de transformar o Jardim Público em um jardim zoológico e botânico (A Província de São Paulo, 4 mar. 1888). A Província de São Paulo foi categórica. Embora a ideia fosse considerada boa, o jornal não via vantagem em “destruir o que existe no nosso jardim público para adaptá-lo” a outro fim. A construção de um zoo no local demandaria a derrubada de árvores, o que, para o periódico, era uma perda enquanto abundavam pela cidade terrenos baldios. Em outras palavras, o jornal se opunha não à construção de um zoo, mas, sim, à construção de um no Jardim da Luz.
No entanto, em abril do mesmo ano, a Assembleia Legislativa Provincial de São Paulo deu seu aval à conversão, ficando assim o Jardim da Luz autorizado a cultivar e criar “productos da flora e fauna da província”. Vale sublinhar, a autorização seria para espécies nativas, não de animais estrangeiros. Assim avaliou a Assembleia: “Da realisação dessa idéa só vantagens possam resultar para a provincia, que ahi terá um lugar de instrucção onde se tornará conhecido sua exhuberante riqueza natural” (Correio Paulistano, 14 abr. 1888, grifo nosso).
Permissão concedida, a coleção foi discreta, sendo aparentemente ignorada pela imprensa. O único registro encontrado sobre o assunto data de 1942, quando um texto da Folha da Noite relembrou diversas tentativas de construção de um zoo na cidade de São Paulo, mencionando a existência temporária de uma coleção de herbívoros no Jardim da Luz, incluindo uma ema que comia moedas dadas pelos visitantes e uma coleção de macacos que, de tão “sem-vergonha”, teve que ser transferida para local menos público (Folha da Noite, 23 mar. 1942).
No Arquivo Histórico de São Paulo, documentos oferecem mais indícios do funcionamento de uma pequena coleção zoológica no Jardim da Luz. Em março de 1917, foi apresentado à Prefeitura um orçamento do engenheiro Manuel Labater para a construção de uma jaula para um casal de onças no local. O trabalho fora realizado a pedido da Diretoria Geral à Diretoria de Obras da cidade, da qual Labater era funcionário. No entanto, o valor orçado (3.671$000) foi considerado muito alto pela chefia, e as onças, ao que tudo indica doadas à municipalidade, foram encaminhadas ao Jardim da Aclimação.
O mesmo processo contém uma planta do recinto projetado, o que permite visualizar o espaço que então era considerado suficiente para abrigar dois animais de grande porte. Trata-se de uma jaula coberta com 11,4 m2 (3m X 3,8m) dividida em duas partes. A primeira seria o local efetivamente de exposição, de 4,5 m2 (1,5m X 3m) e a um metro de altura a partir do solo. A segunda parte, fechada, era azulejada e deveria servir, suponho, para a alimentação e repouso dos animais. Não há espaço reservado à vegetação ou a qualquer indício do que hoje é chamado de “enriquecimento ambiental”.
Figura 1 – Projeto do engenheiro Manuel Labater para jaula de onças no Jardim da Luz (planta com dimensões gerais), fevereiro de 1917.
Fonte: Arquivo Histórico de São Paulo
Figura 2 Projeto do engenheiro Manuel Labater para jaula de onças no Jardim da Luz (visão dianteira), fevereiro de 1917.
Fonte: Arquivo Histórico de São Paulo
Figura 3 Projeto do engenheiro Manuel Labater para jaula de onças no Jardim da Luz (visão lateral), fevereiro de 1917.
Fonte: Arquivo Histórico de São Paulo
Outro documento, de 31 de janeiro de 1921, pede autorização para despesas com animais mantidos no Jardim da Luz, listando espécimes e alimentação: 12 macacos (pão, leites e bananas), 13 veados (milho, quirela e farelo), 1 águia (carne), 3 seriemas (peixes), 3 gaviões (idem), 2 garças (idem), 3 gralhas (idem), 2 araras (milho, quirela, verdura), 3 patos “commum” (idem), 1 cisne (idem), 1 pato crespo (idem), 4 marrecos (idem), 3 mutuns (idem), 22 gansos (idem), 18 saracurus (idem), 15 jacus (idem), 18 pavões (idem) e 20 marrequinhos (idem). Também estão listados os gastos para “os pombos do Belveder” (milho) e os “passarinhos do bosque da Avenida Paulista” (farelo e quirela), além de uma “besta” (milho, farelo e ferraduras), que deveria trabalhar no local[1](Diretoria Geral/Diretoria de Hygiene, 1920, MS).
Apesar da presença desses animais, o Jardim da Luz não chegou a ser considerado o primeiro zoológico da cidade, título que foi concedido somente anos mais tarde ao Jardim da Aclimação, fundado em outubro de 1890 por particulares sob o nome Companhia do Jardim de Acclimação, Zoologico e Botanico de São Paulo. Em uma pequena nota, o Correio Paulistano saudou a empreitada: “O objetivo ligado a esta empreza é muito interessante, pois tende a explorar um fim que certamente coaduna-se com o desenvolvimento progressivo desta terra” (Correio Paulistano, 25 out. 1890, grifo nosso).
Nos primeiros dias de janeiro, foi publicado na imprensa, na íntegra, o estatuto da empresa[2], presidida pelo médico Carlos José Botelho. Já em seu primeiro artigo, o objetivo dos empresários foi apresentado de forma clara: “Crear e [ilegível] em terrenos suburbanos um parque ou jardim para acllimar, fazer reproduzir e expor especies animaes e vegetaes” (Correio Paulistano, 1 jan. 1891, grifo nosso). Todos os 43 acionistas[3] também estavam listados, assim como os incorporadores: Carlos José Botelho, Alberto Lofgren (sic) e Francisco Ramos de Azevedo.
Já em seu primeiro ano de existência, a companhia adquiriu terrenos –um de 476.178 metros quadrados e outro de 61.273 metros quadrados– tanto para a revenda quanto para a construção do futuro parque. Algumas obras começaram a ser empreendidas: “Para iniciar a acclimação de alguns animaes e dar um começo de vida ao Jardim, despendemos em cercos, revolvimento de terra, plantações de forragens, encommenda de gado bovino e lanigero, construção de um estabolo etc” (Companhia Jardim de Acclimação, Zoologico e Botanico de S.Paulo, Correio Paulistano, 27 mar. 1892). No mesmo ano, dois homens que trabalhavam no parque, recentemente demitidos por Carlos Botelho por terem pedido aumento de salário, entraram no jardim durante a noite e mataram a tiros e a punhaladas duas emas (A Província de S.Paulo, 4 ago. 1892), vingando-se do ex-patrão. Além de explicitar a presença de relações conflituosas de trabalho que refletiam no trato com os animais, a notícia, ao mencionar as duas emas, mostra a intenção do local de se tornar um ponto de exposição de animais exóticos.
Embora exista referência a uma possível inauguração do parque (Correio Paulistano, 19 abr. 1893), o relatório do terceiro ano da companhia, publicado em 1894 pela imprensa, fez apenas menção, como rendimentos do negócio (que ainda não era lucrativo), “a venda urbana de leite, porém, mais tarde, esta poderá ser augmentada com a venda de animaes, de aves, de productos de horticultura, pecicultura, arboricultura, floricultura etc.” (Companhia Jardim de Acclimação, Zoologico e Botanico de S.Paulo, Correio Paulistano, 8 ago. 1894)
Parecia então, que a exposição de animais não era uma das atividades do Jardim de Aclimação –embora estivesse prevista, no estatuto da empresa, como uma de suas atividades. Essa hipótese é corroborada por um artigo d’O Estado de S.Paulo de 1895 que criticava a falta de um jardim zoológico na cidade. O jornal argumentava que a lei que criou o Museu do Estado (Museu Paulista, conhecido como o Museu do Ipiranga) previa a construção de um zoo nas dependências da instituição quando chegasse o momento oportuno. Sendo assim, o Estadão cobrava o Legislativo para que a obra fosse realizada:
Consignada e votada essa verba depois dos necessarios e faceis estudos preliminares, e executando esse artigo da lei, o bairro do Ypiranga ficará sendo o mais interessante de S.Paulo, e nossa capital aumentará com ele o seu brilho de cidade moderna e a sua importância de capital rica (O Estado de S.Paulo, 12 fev. 1895, grifo nosso).
Trata-se da primeira menção que relaciona diretamente o valor simbólico da capital, sua relevância e sua afirmação de modernidade com a presença de um jardim zoológico.
De fato, a associação entre a presença de um zoológico no espaço urbano e a afirmação de prestígio de uma cidade não foi exclusividade de São Paulo. Ritvo (1996) descreve como o zoológico de Londres funcionava, mais do que para propósitos científicos, para inflar o orgulho nacional da população britânica, principalmente em comparação aos territórios coloniais:
Qualquer britânico poderia sentir orgulho da capacidade superior de seus concidadãos de manter tantas espécies exóticas em confinamento, manipulá-las e estudá-las para que fossem mais bem compreendidas e apreciadas do que foram pelos povos que viveram entre elas por milênios.
Em resumo, manter animais exóticos em cativeiro era um atraente símbolo do poder humano em geral e, dependendo da origem e do destino dos animais, um símbolo do poder britânico (Ritvo, 1996:50, tradução nossa[4]).
O domínio simbólico dos animais, no entanto, não se restringia àqueles exóticos. No caso específico de São Paulo, Nelson Aprobato Filho mostrou como todo um corpo de leis municipais promulgadas na segunda metade do século XIX e início do século XX visou responder aos anseios do poder público pela modernidade ao controlar as espécies animais domésticas e sinantrópicas que viviam na cidade (2006:113). Os carros de bois foram proibidos nas principais vias, assim como o trânsito de suínos e a circulação de cachorros não registrados.
Houve segregações e ocultações de elementos indesejados –não só, mas também de animais– para a construção de uma nova imagem de São Paulo. Um exemplo foi a mudança dos nomes das ruas da cidade. Em 1912, por exemplo, o prefeito Raymundo Duprat transformou a via Estrada das Boiadas em Rua Rio de Janeiro. Também a Rua do Gado, na Vila Clementino, foi rebatizada como Rua Doutor Diogo Faria em 1929. Segundo Aprobato Filho, esses não são casos isolados, mas exemplos de um processo mais amplo de “obliteração de um passado ‘não muito honroso’” em que animais e homens se misturavam:
Mais do que simples e corriqueiras mudanças de nomes, prática para todos há muito conhecida e deveras utilizada, as duas Leis representavam também, para a história da cidade de São Paulo, de seus habitantes e de seus animais, algo mais profundo, significativo e complexo do que a primeira vista pode parecer. Mais do que homenagens, elas simbolizavam, sutilmente, uma ocultação. Mais do que instituírem permanências, elas buscavam realçar novas atitudes e ao mesmo tempo embaciar antigas práticas. Mais do que eternizarem nomes, o objetivo era criar modernas imagens (2006:116).
No Rio de Janeiro, Farage (2013) demonstra como o modelo sanitarista, do início do século XX, transformou vacas, porcos, cachorros e outras espécies de coabitantes a intrusos no espaço urbano. Segundo a autora, é plausível que a antiga proximidade social entre homens e animais impedisse que espécies comestíveis fossem vistas como simples commodities e que espécies sinantrópicas, como ratos, como simples transmissoras de doenças. Com a expulsão dos animais da cidade e o fortalecimento do discurso médico-sanitarista, por outro lado, abriu-se espaço para toda uma reformulação dessa relação e novos significados passaram a ser atribuídos aos animais.
Ou seja, tanto Aprobato Filho quanto Farage mencionam uma compartimentalização do espaço urbano pela modernidade que enfatizou e fortaleceu a divisão entre homens e animais, os quais, quando domésticos e sinantrópicos, passaram a ter sua circulação controlada e restrita a espaços bem delimitados, tais como matadouros (Dias, 2009) e laboratórios de pesquisa (Farage, [201-]a). Esta pesquisa busca demonstrar que, nesse mesmo movimento, os animais selvagens e exóticos também foram dispostos em um lugar delimitado e controlável na nova configuração urbana: o zoológico.
Notas:
[1]O gasto de alimentação de todos esses animais, para o período de um ano, era de 437$650, ou seja, muito menor que o preço orçado para a construção do recinto das onças anos antes.
[2] A inspiração do empreendimento, já expressa por seu nome, era o Jardin d’Acclimatation, em Paris, criado em 1860 pelo imperador Napoleão III. O local respondia às demandas da Société Impériale Zoologique d’Acclimatation, cujo objetivo era criar um jardim que favorecesse a introdução, adaptação e domesticação de espécies animais. Intenções, portanto, sobretudo de ordem prática, como deixou claro Isidore Geoffroy Saint-Hilaire, um dos seus idealizadores:
Não queremos criar um segundo Jardin des Plantes. Este belo estabelecimento está bem onde está e não é preciso um segundo. É um outro estabelecimento e essencialmente diferente, apesar de alguns pontos comuns, sobre o que podemos chamar de fronteiras comuns. É um jardim zoológico de uma nova ordem que nós iremos criar em Bois de Boulogne. É a reunião de espécies animais que podem dar com vantagem sua força, sua carne, sua lã, seus produtos de todos gêneros à agricultura, à indústria, ao comércio ou ainda uma utilidade secundária, mas muito digna, que podem servir à nossa recreação, ao nosso prazer como animais de ornamento, de caça ou de reconhecimento de algum tipo (citado em Jardin da Acclimatation, 2015, tradução nossa).
No original:
Nous n’avons pas à créer un second Jardin des Plantes. Ce bel établissement est bien où il est et il n’en faut pas un second. C’est un autre établissement et essentiellement différent, malgré quelques points de rencontre, sur ce qu’on peut appeler leurs frontières communes. C’est un jardin zoologique d’un ordre nouveau que nous avons à créer au Bois de Boulogne. C’est la réunion des espèces animales qui peuvent donner avec avantage leur force, leur chair, leur laine, leurs produits de tous genres à l’agriculture, à l’industrie, au commerce ou encore d’utilité secondaire, mais très digne qu’on s’y attache, qui peuvent servir à nos délassements, à nos plaisirs, comme animaux d’ornement, de chasse ou d’agrément à quelque titre que ce soit (citado em Jardin da Acclimatation, 2015).
[3]Eram eles: Marquez de Tres Rios, Conde do Pinhal, Candido Franco Lacerda, Joaquim Franco de Camargo, Justiniano de Mello Oliveira, Dr. Elias A Pacheco e Chaves, Dr. Elias Fausto P. Jordão, Dr. Fermiano de Moraes Pinto, Coronel Antonio Proost Rodovalho, João de Oliveira Guimarães, João A. Garcia, Antonio Augusto Corrêa, Carlos Correa Galvão, Joaquim Pinto & Comp., Pedro Egydio Souza Aranha, Aguiar & Irmão, José Ignacio de Camargo, D. Rozalina de Queiroz Aranha, D. Antonia de Queiroz Aranha, Dr. Alberto A. de Oliveira, Dr. José E. Arruda Botelho, Dr. Francisco Maria de Mello Oliveira, Boaventura D. Pereira de Barros, Commendador Manoel Carlos Aranha, Dr. Henrique de Almeida Regadas, Viúva Oliveira & Filhos, Dr. Manoel Pessoa de Siqueira Campos, Camps & Comp., Guilherme Ralston, Luiz Berrini, Domingos del Dero, Dr. Augusto Cincinato A. Lima, Antonio Carlos de Arruda Botelho, Dr. José Manoel da Fonseca Junior, Conselheiro Antonio Moreira de Barros, Carlos Teixeira de Carvalho, Dr. Carlos José Botelho, Bento Ferraz do Nascimento, Dr. Alonso Goaynaz da Fonseca, Antonio Alves Pereira de Almeida, Luiz Galvão Correa, Dr. Manoel Netto de Araujo (Correio Paulistano, 1 jan. 1891).
[4] Trecho no original:
Any Briton could take pride in the superior competence of fellow citizens able to maintain so many exotic species in confinement and to manipulate and study them, so that they were better understood and appreciated than by the peoples who had lived among them for millennia.
In summary, keeping exotic animals in captivity was a compelling symbol of human power in general and, depending upon where the animals came from and where they were kept, a symbol of British power (Ritvo, 1996:50).