Pressões da imprensa no começo do século 20 para a criação de um zoo em São Paulo

Este é um trecho da dissertação de mestrado “Rastros: A Constituição do Zoológico de São Paulo na Imprensa Paulistana”, defendida na Universidade Estadual de Campinas em 2015 por Luísa Pessoa.


Conforme as primeiras décadas do século XX passavam, a construção de um zoológico na cidade de São Paulo passou a ser vista como mais do que desejável, necessária. Em 1910, um artigo não assinado no Estadão criticou a falta de preparo de São Paulo para a “indústria do forasteiro”, ou seja, para o turismo. Entre os problemas apontados, estava a falta de um zoológico, que permitiria aos visitantes conhecer os animais locais sem ter que se embrenhar pelas matas do país (O Estado de S.Paulo, 16 fev. 1910).

Três anos mais tarde, dando pouquíssimos detalhes, o mesmo jornal mencionou a pesquisa do “sr. Flower”[1], que teria publicado uma estatística com todos os jardins zoológicos do mundo. Seriam 168 zoos ao todo. Na pequena reportagem, era clara a admiração pelas instituições alemãs: “Na Europa, o primeiro lugar pertence à Alemanha, que conta nada menos de 20 [zoológicos] e todos importantíssimos tanto pela quantidade como pela qualidade”.  A situação brasileira foi lembrada e lamentada: “O Brasil, que possui uma das faunas mais interessantes do mundo, conta apenas um jardim zoológico, e esse mesmo muito pobre, não podendo sofrer cotejo com qualquer jardim congenere, do estrangeiro” (O Estado de S.Paulo, 29 de abr. 1913). Não estava claro qual zoológico a pesquisa mencionava[2].

Não é provável que fosse algum do Rio de Janeiro, pois no mesmo ano o Estadão publicou uma entrevista com Júlio Furtado, da Inspetoria de Mattas e Jardins da cidade, sobre um novo jardim zoológico na capital a ser construído pela Prefeitura “nos terrenos contíguos ao parque da Boa Vista” e a ser inaugurado em um prazo de dois anos. Disse o jornal: “a necessidade dessa construção salta aos olhos de quantos conhecem a capital da República” (O Estado de São Paulo, 20 set. 1913). O antigo zoológico do Rio de Janeiro, nessa época, parecia então estar em decadência.

Tampouco o zoo da Aclimação parecia ter muita importância. Em julho de 1911, Carlos Botelho convidou médicos e jornalistas para uma visita ao local. Na reportagem sobre o passeio guiado, foi mencionada a existência de uma leiteria e de um estábulo –todos muito “hygienicos”– nas dependências do parque. Porém, o plano de um jardim zoológico, por sua vez, ainda não havia sido concretizado:

Além do serviço irrepreensível da colheita [sic] do leite, tiveram os clínicos ocasião de verificarem o ideal do dr. Botelho, que é estabelecer ali, como no Jardim de Aclimação de Paris, uma espécie de jardim zoológico. Para isso já existem lá muitos cavalos de fina raça, cães galgos e outros, antas, carneiros, um dromedário e diversas aves aquáticas (Correio Paulistano, 5 jun. 1911).

Ao que tudo indica, a irrelevância desse zoológico dava-se pelo fato de ele ainda não ter reunido um número suficiente de animais selvagens e exóticos, mostrando que o que então caracterizava essa instituição era trazer o “curioso” e o “estranho”, ou seja, proporcionar uma incursão pelo desconhecido. As espécies domésticas, por ainda estarem socialmente próximas nas ruas da cidade, não incitavam a curiosidade do público.

Ainda assim, na década de 1910, por um período pouco menor do que três anos, pareceu ter existido um zoológico em São Paulo. Em outubro de 1916, o engenheiro e arrendatário do Bosque da Saúde, Miguel Antonio Bruno, levou representantes da imprensa para uma área em que dizia pretender inaugurar um zoológico (Correio Paulistano, 23 out. 1916). Em fevereiro de 1917, propagandeou-se no Correio Paulistano um “Carnaval Zoológico” no Bosque da Saúde, com animais fantasiados –cães, macacos, aves, cabras, cavalos, jaburus e quatis– e música.

 Em março de 1918, no entanto, uma carta na seção “Queixas e Reclamações” do Estadão denunciou as péssimas condições no Bosque da Saúde, com animais passando fome e em situação de penúria. Além disso, o leitor criticava a falta de cuidado do estabelecimento com os animais ferozes e cobrava providências –não do poder público, mas da Sociedade Protetora dos Animais[3]:

Quanta miséria se vê ali, diz o missivista, com referência aos pobres animais! Mortos de fome, pessimamente alojados, e nas gaiolas uma água transformada em outro líquido, verde e viscoso, que até não tem classificação. Acrescenta que o porteiro lhe afirmara que seu patrão era sócio da Sociedade Protectora dos Animaes!

Outro caso: é o missivista que fala: ‘Vi uma gaiola, aberta, que tinha dentro uma enorme jaracuxxu; por essa porta entrou uma criança de 7 anos de idade e ontem salvei uma negrinha de ser mordida pelo perigoso réptil e isso na presença de muita gente. Sr. redator: é preciso que a Protetora dos Animais mova uma fiscalização rigorosa sobre esse parque para que o espectador, humano, não morra de dó ao ver a situação dos pobres animaizinhos (O Estado de São Paulo, 26 mar. 1918).

Após esse texto, não foram encontradas mais referências na imprensa sobre um zoo no Bosque da Saúde, o que leva a crer que ele tenha sido fechado já em 1918.

 Como ocorreu em 1910, também em 1920 uma coluna no Estadão cobrou um jardim zoológico na cidade, justificando sua importância pelo apelo que o parque teria entre os turistas e a população. A ideia havia sido motivada pela exibição de um curta-metragem no Cinema Central sobre o Jardim Zoológico de Nova York[4]:

Diante daquelas cenas e figuras que tanto interessavam e divertiam o público do Central, a pergunta de muita gente foi esta:

– Por que não se faz em São Paulo um Jardim Zoológico?

Sim: porque não se havia de fundar aqui um jardim desses, onde aos poucos fossemos reunindo os exemplares mais interessantes da nossa fauna? – Em todas as grandes cidades, onde existe um jardim zoológico, é esse um dos pontos mais visitados pelo povo, que sempre encontra ali o que ver e comentar, e pelos estrangeiros, que esperam ver exemplares nunca vistos nos seus países (P., O Estado de S.Paulo, 24 jul. 1920, grifo nosso).

O texto enfatizava que no Brasil não existia um só Jardim Zoológico, o que nos leva a supor que nem o jardim da Aclimação nem o zoo do Rio de Janeiro faziam jus às expectativas, ao menos as do colunista. P. também acreditava que a importância de um zoológico para a cidade se dava em termos indiscutíveis:

Sobre a utilidade e vantagem de um jardim zoológico uma grande cidade brasileira como S.Paulo não há, creio eu, duas opiniões. Resta que disso se lembre um dia quem tudo pode fazer e queira ligar o seu nome a uma obra que tanto interessará o povo e os estrangeiros, e que é de admirar que não a tenhamos ainda (P., O Estado de S.Paulo, 24 jul. 1920).

É de 1923 o primeiro artigo de opinião encontrado na imprensa dedicado exclusivamente à defesa de um jardim zoológico na cidade de São Paulo.

Publicado no Estadão e assinado também pelo colunista P. na seção “Coisas da Cidade”, o texto eximiu-se de expor argumentos para justificar a importância de um zoológico, tomando o assunto como positivamente consensual. O artigo, assim, concentrou-se em criticar, com perplexidade, como São Paulo, “já uma grande metrópole, com 600.000 habitantes”, contava com poucos divertimentos “fôra as partidas de futebol, os cinemas, os espectaculos nos theatros”.

A viabilidade de um empreendimento do tipo, para o colunista, estava garantida. O sucesso dos animais no Jardim da Luz e na Aclimação, apesar de “serem sempre os mesmos e pouquissimos e estarem por isso muito vistos e revistos”, mostrava a grande demanda por um zoo na cidade, onde a população “teria um excellente ponto de divertimento” e os estrangeiros um local “onde poderiam admirar a riqueza incrível da nossa fauna”.

Interessante notar: apesar da defesa apaixonada, P. não fez nenhuma menção a qualquer importância científica de uma coleção zoológica na cidade (O Estado de S.Paulo, 20 fev. 1923): o entretenimento parecia ser a principal justificativa para tal.


Notas:

[1]Stanley Smyth Flower, então diretor do jardim zoológico de Ghizeh, cidade próxima ao Cairo.

[2] Em 1909, Flower publicou na revista The Zoologist uma listagem de 150 zoológicos. Seis deles ficavam na América do Sul, quatro no Brasil:

  1. BAHIA, BRASIL. – Uma pequena coleção zoológica em um parque público fora da cidade. O senhor M. J. Nicoll visitou esse jardim, em 26 de dezembro de 1902, e me disse que a ménagerie, então, continha apenas algumas queixadas, papagaios, mutuns e um pavão. 36. BLUMENAU, BRASIL. – Um Jardim Zoológico abriu em 1870, mas não existe mais (…) 39. PARÁ, BRASIL. – Uma interessante ménagerie anexa ao Museu de História Natural e de Etnografia, chamado Museu Goeldi, devido ao seu conhecido ex-diretor Dr Emilie A. Goeldi. O diretor atual é o Dr. Jacques Huber e a superintendente Dr. Emilia Snethlage. O periódico “Boletim” é publicado pelo museu. 40. RIO DE JANEIRO . – Jardim Zoológico sob a direção do sr. Kirschnur.” (Flower, 1909)

No original:

  1. BAHIA, BRAZIL. – A small zoological collection in a public park just outside the town. Mr. M. J. Nicoll visited this garden on the 26th of December, 1902, and tells me that the ménagerie then only contained some Peccaries, Parrots, Curassows and a Peacock. 36. BLUMENAU, BRAZIL. – Zoological Gardens opened in 1870; no longer existing (…) 39. PARA, BRAZIL. – An interesting ménagerie attached to the Museum of Natural History and Etnography, named the “Museu Goeldi”, after its well-known former Director Dr. Emilie A. Goeldi. The present Director is Dr. Jacques Huber, and the Superintendent Dr. Emilia Snethlage. A periodical “Boletim” is published by the Museum. 40. RIO DE JANEIRO . – Zoological Gardens under the directorship of Mr. Kirschnur.” (Flower, 1909)

Devido à ênfase dada à coleção animal do Museu Goeldi, suponho que o zoológico brasileiro mencionado na pesquisa de 1913 seja também o do Pará. Não encontrei mais referências sobre Kirschnur, que teria dirigido o zoológico do Rio de Janeiro.

[3] Aprobato Filho (2006:139) menciona eventos que podem explicar a cobrança do leitor à Sociedade Protetora dos Animais pela situação do zoológico amador. Entre 1899 e 1909, após acordo com a Prefeitura, a guarda temporária em abrigo e o posterior sacrifício de cães soltos recolhidos nas ruas das cidades passaram a ser atribuições da Sociedade União Internacional Protetora dos Animais.

[4]Uma hipótese é que seja o filme, de 1920, rodado no Central Park pela Central Film Company, disponível para visualização em: https://archive.org/details/0472_Central_Park_01_54_35_05 .


Bibliografia