A defesa de Franco da Rocha para a criação de um zoo em São Paulo na década de 1920

Este é um trecho da dissertação de mestrado “Rastros: A Constituição do Zoológico de São Paulo na Imprensa Paulistana”, defendida na Universidade Estadual de Campinas em 2015 por Luísa Pessoa.


No ínício do século XX, a defesa de um zoo em São Paulo ganhou curioso apoio de Franco da Rocha (1864 – 1933), médico psiquiatra idealizador e fundador do Hospital Psiquiátrico do Juqueri. Em 1924, ele assinou uma coluna no Estadão defendendo a construção de um zoológico, avaliado como um “ornamento indispensável para a grandeza de uma terra”, além de um “passatempo instrutivo” (Franco da Rocha, Estado de S.Paulo, 14 mar. 1924). O artigo tomava a viabilidade financeira do empreendimento como certa e clamava por uma atitude do poder público frente à destruição da fauna brasileira pelos caçadores. Desta maneira, a construção de um zoo cumpriria uma nova função: reunir espécies que em breve estariam em extinção.

Franco da Rocha apresentou uma narrativa que aguilhoava o orgulho bandeirante: “Não deixa de ser um pouquinho humilhante a ausência de um Jardim Zoológico na terra dos bandeirantes –no Estado em cujo estandarte se inscreveu o lema heráldico: “Non ducor, duco” [“Não Sou Conduzido, Conduzo”] (Estado de S.Paulo, 14 mar. 1924).

O médico mostrava-se ciente das inovações arquitetônicas para zoológicos já em voga na Europa, em que grades eram substituídas por fossos. Dessa forma, defendia que a construção de um zoo em São Paulo devesse, diferentemente do que havia ocorrido no Rio de Janeiro (onde as grades enferrujadas enfeiavam o espaço e colocavam os visitantes em risco, segundo ele), seguir esse novo parâmetro, assim como aconteceu no zoológico de Sidney:

Os modernos Jardins Zoológicos guardam suas feras em áreas fechadas por fossos de feitio especial, bem estudados, que os animais não podem em caso algum saltar e transpor, de modo que essas prisões disfarçadas dão ao visitante a impressão de que os animais estão soltos, como vivem no seu habitat natural (Franco da Rocha, Estado de S.Paulo, 14 mar. 1924, grifo nosso).

Interessante notar o uso do termo “prisão” para se referir à condição animal no zoo, a primeira encontrada na imprensa com este sentido desde a menção de 1884 sobre o zoo de Lisboa. Mais do que isso, Rocha admitia que a nova arquitetura zoológica não necessariamente fazia com que os animais se sentissem livres, como em seu habitat natural, mas, sim, que ela dava aos visitantes a impressão de liberdade.

Em 1924, data do artigo, o médico acabara de se aposentar tanto do cargo de professor de Neuriatria e Psiquiatria da Faculdade de Medicina de São Paulo (1918-1923) quanto a de diretor do Hospício de Juqueri (1896-1923).

Segundo Piccinini (2003), uma das principais inovações trazidas por Franco Rocha para o Juqueri, inaugurado em 1898, foi a criação de colônias agrícolas “em que os pacientes viveriam em contato com a natureza” e de um regime em que os internados pudessem “trabalhar ao ar livre, em relativa liberdade”. Segundo o autor e também Oliveira (2011), graças a Franco da Rocha, o Juqueri foi “pioneiro do regime de liberdade para os doentes mentais na América do Sul”. Até então, o Hospital de Alienados em São Paulo, do qual Rocha se tornou diretor em 1896, funcionava em um velho casarão da várzea do Carmo, no centro da cidade, onde os pacientes ficavam em confinamento (Oliveira, 2011).

O próprio Rocha, ao chegar ao cargo, teria empreendido uma forte campanha, por meio da publicação de artigos em jornais como Correio Paulistano e O Estado de S.Paulo, denunciando as péssimas condições do casarão do Carmo e advogando pela construção de um “hospital moderno que possibilitasse o desenvolvimento de pesquisas científicas e a assistência digna e especializada aos doentes mentais” em um lugar afastado da cidade (Oliveira, 2011).

Em 1898, o Juqueri foi inaugurado parcialmente, com uma colônia agrícola masculina que seguia o modelo europeu de “open-door”, em que os internos podiam “circular livremente pelas suas intermediações, sem precisar ficar confinados em celas”. Os pacientes não ficavam ociosos, mas se dedicavam a trabalhos agrícolas. O pavilhão de regime fechado só foi inaugurado em 1901. Em 1903, foi aberta a seção feminina do hospício.

Segundo Franco da Rocha (citado em Oliveira, 2011), “a ocupação ao ar livre, que lhes [aos doentes mentais] concede a aparência de liberdade, diminui-lhes extraordinariamente a angústia, a ansiedade, o mal-estar que os atormenta na prisão sem trabalho”.

Seguindo esse propósito, durante toda sua carreira, Rocha publicou artigos condenando a “loucura dos ‘porões’”, em referência ao tratamento não especializado e descuidado que os doentes mentais então recebiam em delegacias, santa casas e prisões do país (Oliveira, 2011). Da mesma forma, Rocha defendia que os hospícios deveriam ter laboratórios “para o estudo da anatomia pathologica e da pathologia experimental” (citado em Pacheco e Silva, 1924) guiados por “ideas scientificas”. Sem eles, ainda segundo o diretor, os médicos se transformavam em “empiricista[s] mais ou menos feliz[es], um[ns] curandeiro[s], no fim das contas”, e os hospitais meras “gaiolas de loucos”, situação que não coadunava “com o progresso e o bom nome de São Paulo entre os Estados do Brasil”. Apesar disso, o laboratório do próprio Juqueri só funcionou a partir de 1921, 23 anos após a inauguração do hospício (Oliveira, 2011).

Franco da Rocha morou com sua família no Juqueri durante todo o tempo em que dirigiu a instituição. Segundo Piccinini (2003), o médico gostava de percorrer, nas horas vagas, “os campos próximos, contemplando a paisagem, examinado flores e frutos, ouvindo os gorjeios dos pássaros, pescando pachorrentamente às margens do rio”. Rocha estudou a criação de abelhas indígenas, multiplicando colmeias na área do hospício, e se encantou pela ornitologia. Escreveu uma monografia sobre o Tico-Tico e diversos artigos sobre o tema, doando também toda sua biblioteca especializada em ornitologia para o Museu Paulista, então sob direção de Afonso de E. Taunay, que era seu amigo.

Como se vê, há uma analogia entre as inovações propostas por Franco da Rocha para zoológicos e hospícios. Ambos os espaços deveriam seguir preceitos modernos de arquitetura que simulassem um “ambiente natural”, ainda que, na realidade, fossem lugares de controle e contenção. Além disso, também precisariam ser lugares de pesquisa, ganhando legitimidade científica[1]. Por fim, os dois denotariam o nível de progresso de uma cidade.

Importa reter que Franco da Rocha, assim como seu predecessor, Philippe Pinel, que participou da concepção da Ménagerie Nacional do Museu de História Natural de Paris[2], reconhecem a condição cativa dos animais em zoológicos. Por isso, Franco da Rocha esforça-se para conceder uma aparente liberdade a eles nesses espaços. Pinel, inclusive, menciona que, para fins de pesquisa, embora uma ménagerie permitisse a observação das características e hábitos dos animais para sua melhor classificação, ela não poderia “fazer conhecer exatamente a maneira de viver de um animal livre”. Inclusive, um dos estudos possíveis em uma ménagerie seria: “até que ponto a escravidão muda o caráter dos animais?” (Pinel; Millin; Brongniart, 1792).

H. Ellenberg (1965) apontou semelhanças entre os jardins zoológicos e os estabelecimentos psiquiátricos no pensamento social europeu moderno[3]. O autor lembra que, durante os séculos 17 e 18, muitos hospícios eram abertos à visitação pública e, assim como os zoológicos, uma das principais preocupações dos funcionários era a de impedir comportamentos agressivos e cruéis do público contra os internos (1965:68). Os visitantes também elegiam seus internos favoritos (uma correlação com animais favoritos), não necessariamente sendo esses os casos mais desafiadores para os médicos ou os que haviam custado mais para serem adquiridos pelos zoos (1965:72-73). Ainda segundo Ellenberg, tanto animais quanto doentes mentais apresentavam traumas em relação à condição cativa: caso vivessem antes em liberdade, era muito provável que não conseguiriam superar o fato de agora estarem presos. Da mesma maneira, caso estivessem bem adaptados à vida de reclusão, a ideia de se verem longe daquele espaço motivaria terror. Como exemplo, o autor menciona o caso do bombardeio e do incêndio do zoológico de Hamburgo em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, quando muitos dos animais que escaparam teriam voltado voluntariamente a suas jaulas passado o ataque (1965:83).

Voltemos à atuação de Franco da Rocha por um zoológico em São Paulo. Quinze dias depois de ele ter escrito o artigo de apoio ao zoológico, o Estadão publicou outra coluna não assinada relatando que diversos leitores haviam escrito ao jornal para apoiar as ideias do médico. O periódico aproveitou a oportunidade para apresentar novos argumentos a favor do empreendimento: um zoo também significaria a criação de um espaço verde, quase uma “mata”, ou seja, não local de “muito gramado e poucas árvores”, mas “um verdadeiro bosque”, em uma cidade que, em constante urbanização, perdia seus espaços para lotes de construção. Além disso, como já havia exposto Franco da Rocha, poderia servir para preservar espécies brasileiras que estavam em vias de extinção (O Estado de São Paulo, 2 abr. 1924).

Com a entrada de Franco da Rocha, a pressão pela construção de um zoo na cidade pareceu ganhar respaldo “científico” –um jardim zoológico não serviria somente para fins recreativos, mas para a conservação de animais e o aprendizado dos homens.

Em 1926, Innocencio Seraphico, vereador da Câmara de São Paulo, submeteu à casa um projeto de lei para autorizar a criação de um zoológico municipal que, “além de constituir um local de recreio para a população, servirá para importantes experiências científicas” (O Estado de S.Paulo, 15 ago. 1926). Para defender sua proposta, Seraphico apresentou exemplos de zoos de sucesso na Europa e nos Estados Unidos, leu o artigo de Franco da Rocha publicado no Estadão e propôs que a comissão administrativa para a construção do zoo fosse composta por: Franco da Rocha, Carlos Botelho (do jardim da Aclimação), Sérgio Meira Filho (médico), Rodolpho Ihering (zoólogo e biólogo), Manuel de Almeida (proprietário do zoo amador da Granja Julieta) e Américo de Barros. Seraphico defendeu que nenhum membro da comissão ganhasse qualquer remuneração pelo trabalho, afastando assim “incompetentes apadrinhados” de uma tarefa da qual “amantes da natureza” se encarregariam (O Estado de S.Paulo, 15 ago. 1926).

Menos de um mês depois, o Estadão saudou a aprovação do projeto em uma primeira discussão na Câmara. A partir de então, passou a apontar os benefícios da construção de um zoológico no Jaraguá, a saber: a localização não estaria nem tão próxima nem tão longe do centro da cidade, sendo acessível por meio do transporte público (“fica a oitocentos metros da estrada de ferro Ingleza”), oferecia grande espaço para construção e futura expansão do zoo, ainda possuía preço módico no mercado imobiliário, apresentava topografia favorável e, por fim, tinha trechos de mata virgem.

O Estadão deixou claro porque, como membro da imprensa, se posicionava a favor da construção de um zoológico –esse bem para a “hygiene moral da população” e para sua “vida intelectual” e “saúde física”:

Não nos sentimos peados para assim nos pronunciar sobre um assumpto que envolve forçosamente um negócio, matéria delicada. E não nos sentimos peados por duas razões, entre outras: a primeira é que, já há cerca de dois anos, pleiteamos a aquisição pela Câmara dos terrenos do Jaraguá, que iam sendo dolorosamente devastados pelas derrubadas de matas; a segunda é que sobre a conveniência dessa aquisição já se tem manifestado nomes dos mais aclamados no país entre os que se dedicam ao estudo da história natural e que não se cansam de clamar contra a destruição sistemática e dolorosa dos últimos redutos da nossa fauna e da nossa flora, ameaçados de desaparecimento (O Estado de S.Paulo, 3 set.1926).

Dessa forma, a defesa de um zoológico no Jaraguá era, além de tudo, uma ação para a preservação da própria natureza que vinha sendo devastada. Tomada a posição, o Estadão não se constrangeu na defesa explícita do projeto. Já em novembro, um telegrama à Câmara Municipal que incentivava a criação de um zoo municipal no Jaraguá era assinado por Franco da Rocha, Sérgio Meira, Américo de Barros e Júlio de Mesquita Filho, proprietário do jornal.

O discurso pró-zoo e pró-Jaraguá ganhou força. Em setembro de 1926, o botânico Frederico Carlos Hoehne (1882-1959)[4] assinou artigo no Estadão em defesa da construção do zoológico municipal no Jaraguá no qual aprofundava a ideia de que o progresso de uma cidade estava ligado à existência desse empreendimento:

Montevideu tem a Villa Dolores, Buenos Aires o seu Jardim Zoológico. O Brasil, esse nosso amado Brasil, que é que tem? Um simulacro de jardim de animais no Rio de Janeiro, que mais serve para nos envergonhar e que só tem servido para fomentar vícios. Nós precisamos sair desse marasmo, desta indiferença, precisamos atender o que o povo reclama, precisamos procurar equipar-nos pelo menos a estas duas republicas vizinhas, se não desejamos passar pelo desgosto de sermos classificados de atrasados e incultos. Quem melhor do que o Estado de São Paulo, pode, no Brasil, dar um o exemplo para tanto? São Paulo, o Estado pioneiro, o vanguarda e ‘leader’ do progresso do nosso país, deve tratar de fundar um grandioso jardim zoológico, um belo parque botânico e museus correspondentes, que estejam na altura de seu progresso, que correspondam em toda a linha ao seu desenvolvimento material e intelectual (Hoehne, O Estado de S.Paulo, 11 set. 1926, grifo nosso).

Para o botânico, um zoológico teria importância singular no Brasil por ser o lugar em que se exporia a principal atração brasileira aos olhos dos estrangeiros que visitavam o país: a “natureza primitiva”. Ou seja, Hoehne defendia, no âmbito dos argumentos cientificistas da década de 20, a primazia dos animais selvagens representantes da fauna local sobre os exóticos para agregar conhecimento sobre o país. Mais do que isso, para ele, o local teria valor estético e ético: o contato com a natureza permitiria aos homens cultivarem os sentimentos de beleza e pureza –argumento que subentendia uma relação limitada com os animais no ambiente urbano.

Em 4 de novembro, foi publicada a notícia de que havia sido aprovada a emenda que autorizava o prefeito a adquirir a “necessária área de terrenos no sítio Jaraguá, mediante avaliação prévia e ‘ad referendum’ da Câmara ou mediante permuta, também com avaliação, por terrenos municipais”, para a construção de um zoológico. Poucos dias depois, Franco da Rocha voltou a assinar um artigo em que elogiava a decisão: “Os nossos aplausos, os dos amantes da Natureza, são incondicionais e sinceros” (O Estado de S.Paulo, 6 nov. 1926).

A lei é assinada em 24 de novembro de 1926, sob o número 3.011, sem especificar qual seria a função de um zoológico, além de reunir animais brasileiros e exóticos:

LEI Nº 3011, DE 24 DE NOVEMBRO DE 1926.

CRÊA O JARDIM ZOOLOGICO MUNICIPAL.

  1. Pires do Rio, Prefeito do Município de São Paulo, Faço saber que a Camara, em sessão de 3 do corrente mez, decretou e eu promulgo a seguinte lei:

Art. 1º Fica o Prefeito autorizado a crêar um Jardim Zoologico Municipal, destinado ao uso publico e onde serão conservados specimens das faunas exótica e brasileira.

Art. 2º A administração do Jardim será confiada a uma commissão de cinco pessoas gradas, escolhidas pelo Prefeito, que desempenharão as suas funcções, independentemente de qualquer remuneração.

Art. 3º O pessoal empregado na conservação e administração do Jardim será indicado pela commissão e admittido e dispensado livremente pelo Prefeito, não fazendo parte do quadro do funccionalismo.

Art. 4º A escolha do local apropriado ao Jardim será feita pelo Prefeito, de accôrdo com a commissão administradora.

Art. 5º Para a execução da presente lei, fica o Prefeito autorizado a adquirir a necessaria área de terreno, no sitio Jaraguá, mediante avaliação prévia e “ad-referendium” da Camara ou mediante permuta, também com avaliação, por terrenos municipaes.

Art. 6º Revogam-se as disposições em contrario.

O Director Geral da Prefeitura a faça publicar.

Prefeitura do Municipio de São Paulo, 24 de novembro de 1926, 373º da fundação de São Paulo.

O Prefeito, J. Pires do Rio.

O Director Geral, Luiz Tavares.

Em julho de 1927, a comissão criada para avaliar o melhor ponto para a construção de um zoo na cidade divulgou suas conclusões. Como era esperado, o Jaraguá foi o local escolhido. Em artigo sobre a importância da comissão, Franco da Rocha apresentou como um dos defensores do local um especialista indiscutível para a época: Heinrich Hagenbeck[5], proprietário do Jardim Zoológico de Hamburgo:

Hagenbeck esteve, há poucas semanas, em São Paulo e fez visitas aos arredores da capital, a convite de um dos enthusiastas do Jardim Zoológico. Andou pelos lados de Santo Amaro, do Jardim da Aclimação e do Jaraguá. Ficou encantado com o Jaraguá; num entusiasmo transbordante disse-nos ele, à noite, em palestra, que ali se poderia fazer o Zoológico mais belo do mundo, pois aquilo que outros têm feito com dificuldade, muito tempo e muito dinheiro, lá já existia concedido pela própria natureza: a floresta para um belo parque, água em abundância e acidentes magníficos do terreno para se preparar o “habitat” natural às diferentes espécies zoológicas (Franco da Rocha, O Estado de S.Paulo, 13 jul. 1927).

Em outras palavras, o zoológico de São Paulo tinha potencial não só para igualar a cidade à situação de outras capitais mundiais, como também de solapá-las em sua grandeza.

O jornal também reproduziu o parecer da comissão técnica nomeada pelo prefeito Pires do Rio –Franco da Rocha, Edmur de Souza Queiros[6], F.C. Hoehne, Luciano Gualberto[7] e Heribaldo Siciliano[8]– que declarava o Jaraguá como melhor ponto da cidade para a construção de um zoo. Entre as razões listadas, estão algumas que já haviam sido levantadas por Franco da Rocha em artigos no Estadão, como a “abundância de terreno e por preço não exaggerado”, a “abundancia de agua”, a “existência de matas que possam ser desde já aproveitadas para o embellezamento do local[9]”, o “fácil acesso por meio de estrada de ferro ou de bonde” e um “terreno accidentado”.

Essa última característica era especialmente importante aos que respaldavam as inovações cenográficas e arquitetônicas impulsionadas por Carl Hagenbeck: “Os zoológicos modernos não são como os antigos. Hoje se procura dar aos animais a illusão de que estão soltos; não se fazem mais gaiolas com grades; cercam-se os logares destinados aos animaes por meios (sic) de fossos intransponíveis. Onde não há accidentes de terreno é preciso fazê-los artificialmente” (O Estado de S.Paulo, 12 jul. 1927).

O Estadão voltou a defender um zoológico na cidade em outras ocasiões. Em fevereiro de 1928, informou que os proprietários do terreno do Jaraguá estariam dispostos a doar o terreno (de 100 alqueires) para a construção de um zoo. A entrega da área estaria condicionada somente à criação de mais linhas de transporte ao local.

Além disso, o jornal aventou a possibilidade de, em vez de no Jaraguá, a construção ocorrer em um terreno no Jabaquara, “onde o Estado possui terras com mata virgem e com cabeceiras de riacho”. Segundo o Estadão, “o ponto é excelente porque é próximo da capital e facilmente atingível com o prolongamento da linha de bondes”. “A administração ainda não se resolveu por nenhuma das duas fazendas e parece estar inclinada a entregar o problema a uma comissão de técnicos para que esta dê o seu parecer”, disse (O Estado de S.Paulo, 2 fev. 1928).

Tal comissão pareceu ter sido confiada à direção de Franco da Rocha, como faz entender um texto da Folha da Noite de abril de 1928: “Reconhecendo a sua [de Franco da Rocha] grande competência e capacidade administrativa, confiou-lhe o governo do Estado a organização do Jardim Zoologico, obra essa em que está vivamente empenhado o eminente cientista, que assim continua a prestar inestimáveis serviços ao seu Estado” (Folha da Noite, 3 abr. 1928).

Provavelmente, o debate sobre a construção de um zoológico na cidade reanimou o negócio de Carlos Botelho e mudou a forma com que ele divulgava seu empreendimento. Em 1923, por exemplo, já existiam anúncios sobre o jardim. No entanto, esses davam mais ênfase às atividades lúdicas presentes ali –tiro ao alvo, balanços, bilhares, passeio em barcos, futebol– do que propriamente aos animais.

Figura 1 Propaganda publicada no jornal O Combate de 31/03/1923 sobre o Jardim da Aclimação. Imagem reproduzida da Hemeroteca Digital Brasileira (Biblioteca Nacional): http://hemerotecadigital.bn.br/

Figura 2 Propaganda publicada no jornal O Combate de 12/09/1925 sobre o Jardim da Aclimação. Imagem reproduzida da Hemeroteca Digital Brasileira (Biblioteca Nacional): http://hemerotecadigital.bn.br/

Em 1928, o foco mudou e passaram a circular anúncios do Jardim Zoológico da Aclimação divulgando a presença de leões, hienas “da África”, camelos, ursos “da Syria”, onças pintadas, “muitos outros animais carnívoros”, macacos “de todos os países” e de um urso branco “do Polo Norte, o primeiro visto em São Paulo”, na coleção exposta. As outras “diversões”, então, perdiam espaço para fins publicitários.

Figura 3 Propaganda publicada no jornal Folha da Manhã em 06/05/1928 sobre o Jardim da Aclimação. Imagem reproduzida do Acervo Folha (Folha de S.Paulo): http://acervo.folha.com.br

 Apesar da ideia de um zoológico municipal ter sido impulsionada por Franco da Rocha, o projeto naufragou em 1928, após o “notável urbanista francês” Alfred Agache[10] vir à cidade para visitar e avaliar a “Mata do governo, local escolhido pelo governo do Estado para a Criação do Jardim Zoológico de S.Paulo” (Estado de S.Paulo, 13 jun. 1928).

Em 19 de junho, a Folha da Noite estampou sua capa com a chamada: “No reino das feras: Que forças occultas teriam determinado a mudança do futuro Jardim Zoológico de Jaraguá para a Agua Funda?”. O jornal denunciava e fazia duras críticas à mudança dos planos de construção do parque do Jaraguá –”o melhor ponto para esse melhoramento municipal”, como concluíra a comissão liderada por Franco da Rocha– para as matas da Água Funda, no Jabaquara, que teria recebido um aval apressado de Agache. Por que a mudança?, questionava a reportagem. “Porque o local é melhor? Ou porque, realmente, e conforme corre na cidade, gente ‘grossa’ possui lá terrenos e quer assim valorizá-los com a vizinhança de um estabelecimento público que há de ser, amanhã, um dos maiores atrativos da cidade?” (Folha da Noite, 19 jun. 1928). De forma tangencial, eximindo-se da responsabilidade de uma denúncia direta e citando boatos, o jornal sugeria que a mudança havia ocorrido para favorecer a especulação imobiliária.

Debochadamente, o jornal descreveu como as autoridades haviam contornado o parecer técnico, então já conhecido por todos, que elegera o Jaraguá como o melhor ponto na cidade para a construção de um zoo:

Estava o governo em dificuldades de justificar a mudança –quando, de repente, se lembrou de que o Rio hospedara mr. Agache. Telefonou a Agache, mandou vir Agache. Reservou-lhe aposentos especiais na Esplanada. E, na mesma tarde do dia da chegada, Agache era conduzido à Água Funda de automóvel, para dar parecer. Difícil coisa, entretanto, amigo leitor! O homem chegou, mediu o terreno em passos cabalísticos, parou, fuzilando os óculos pelos circunstantes e disse, afinal:

– Une table!

Veio a mesa, prontamente, trazida de um alpendre próximo por dois homens.

– Une chaise! – pediu de novo.

Veio também a cadeira. O homem olhou o sol, fez o sinal da Cruz e sentou-se…

O nosso fotógrafo, de objetiva em frente, aguardava o momento oportuno para ‘bater’ a chapa. Em torno de Agache, agora sentado em frente à mesa vazia, ninguém se movia, ninguém pestanejava sequer. Todos os olhos se fixaram no urbanista francês com uma concentração de faquir.

– Très bien! – concluiu.

E fez a primeira pose.

O coro respondeu em torno:

– Sim, muito bonito…

– N’est-ce pas?

E fez a segunda pose.

– É sim…-responderam os outros

– Très bien! – concluiu.

E fez a terceira pose.

Ergueu-se, fez de novo o sinal da Cruz, e declarou, parodiando o seu antepassado dr. Pangloss[11], que o terreno era o melhor no melhor dos locaes possíveis.

Entrou no auto, rodou de novo para a cidade. Quantos contos pela consulta? Ainda não se sabe. Sabe-se apenas que a sua opinião foi favorável à creação do Jardim Zoológico da Agua Funda, único motivo de sua visita a São Paulo, e que aquella descompostura no sr. Pires do Rio, accusando a sua obra administrativa, teve em mira exclusivamente disfarçar a sua verdadeira missão na Pauliceia.

Quando, amanhã, alguém quiser gritar contra a impropriedade do local para a obra que está se fazendo, naquele subúrbio da cidade, o governo poderá contestar:

– Consultamos o professor Agache. O conhecido urbanista achou ótimo o terreno…

Oh! Senhor! Mas será possível que a opinião do Sr. Agache, tal como o deparamos nas ilustrações junto, prevaleça contra a de uma comissão de técnicos ilustres e contra a de um mestre da especialidade – o sr. [Heinrich] Hagenbeck – construtor de vários jardins zoologicos, que teve sobre o Jaraguá este conceito: -‘Pode-se fazer ali o mais belo Jardim Zoologico do mundo’ (…)?! Como não está satisfeito, ao que parece, com a opinião do urbanista Alfredo Agache (sic), parecenos que o sr. Pires do Rio deveria consultar também o famoso ‘Jafet’ (sic), do Jardim Zoológico de Londres (Folha da Noite, 19 jun. 1928).

Figura 4 Matéria de capa do jornal Folha da Noite de 19/06/1928 contesta a mudança do futuro jardim zoológico público do Jaraguá para a Água Funda. Imagem reproduzida do Acervo Folha (Folha de S.Paulo): http://acervo.folha.com.br/

Menos de uma semana depois, no dia 21 de junho, foi noticiada a suspensão das obras do zoo público. Uma ação “louvável”, avaliou a Folha da Noite. Nessa outra reportagem, também é informado que Hagenbeck estaria envolvido no projeto de construção do zoológico em São Paulo (o que ajuda a explicar seu entusiasmo com a ideia) e que a responsabilidade quanto à iniciativa havia passado da municipalidade para o governo do Estado. Após retomar o caso, o jornal expunha sua opinião, de teor inédito:

Deixando, porém, de lado o urbanista francês e as razões que determinaram a mudança em questão, já agora do domínio público, o que desejamos saber é o seguinte: será este o momento oportuno para dotar S.Paulo de um melhoramento como esse? O custeio das suas obras, que importa em alguns milhares de contos, não deveria ser adiado em favor de outros empreendimentos de mais urgente necessidade?

A construção de um Jardim Zoológico não é coisa indispensável a uma cidade. Naturalmente, com a sua criação, essa cidade aumenta o seu número de atrativos e concorre para uma mais completa educação de seus habitantes. Não bastam, porém, tais justificativas para a conclusão de uma obra dessas, quando outras iniciativas reclamam a mais pronta intervenção do poder público. (Folha da Noite, 21 jun. 1928)

Figura 5 Reportagem publicada no jornal Folha da Noite em 21/06/1928 noticia a suspensão do projeto de um zoológico público no Jaraguá. Imagem reproduzida do Acervo Folha (Folha de S.Paulo): http://acervo.folha.com.br/ 

No entanto, uma reportagem-denúncia provavelmente não teria força suficiente para enterrar, por décadas, o plano de um zoológico municipal. A própria Folha da Manhã[12], na coluna “À Margem dos Factos”, em 1931, dá outra explicação: “O sr. Pires do Rio, quando prefeito, pensou em tornar uma realidade essa velha aspiração dos paulistas. Mas, sobreveio a Revolução [de 1930] e nunca mais se ouviu falar nesse projecto” (Folha da Manhã, 24 jul. 1931). Em um período de menos de cinco anos, o jornal havia mudado novamente de posição, o que pode também ser creditado à mudança de propriedade do jornal, uma vez que em 1931 a Folha foi vendida ao cafeicultor Octaviano Alves Lima. De crítico à construção de um zoológico na cidade, por implicar em gastos que poderiam ser aplicados em projetos mais urgentes, o jornal voltava a defender a empreitada, justificando-a por seu caráter instrutivo.


Notas:

[1] Todas as menções de Franco da Rocha ao futuro zoo o mencionam como um local de estudo a céu aberto:

Para uma boa parte do público o Jardim Zoológico e o Botanico nada mais serão do que uma diversão agradável aos domingos e feriados; para outra parte será uma escola, um logar de estudo. Quanta gente não fará ahi o início de uma carreira brilhante na esphera das sciencias naturaes? A ausencia dessas instituições concorre muito para a nossa pobreza de homens notaveis nos diversos ramos da sciencia subsidiarios da biologia geral (O Estado de S.Paulo, 13 jul. 1927).

[2] A coleção de animais provinha da Ménagerie de Versalhes, que, com a Revolução Francesa (1789), fora destruída. Os espécimes sobreviventes haviam sido transferidos para o Jardin du Roi e ganharam seu novo destino após um relatório, escrito em 1792, de autoria de Alexandre Brongniart (1770-1847), Aubin-Louis Millin (1759-1818) e Pinel, sustentar a importância de uma instituição, agora do povo, que exibisse animais (Ellenberg, 1965:65).

[3] Nelson Aprobato Filho (2006:129-130) também assinala como, no Título III do Código de Posturas de 1873 da cidade de São Paulo, animais bravos, loucos e escravos deviam obedecer a mesma restrição de não vagar pelas ruas da cidade, sendo inclusive tratados de forma justaposta (em artigos seguidos, de números 67, 68 e 69) no corpo da lei:

Art. 67.  É prohibido ter soltos pelas estradas, e mesmo em casa, animaes bravos que possão offender aos viandantes, ou a quem passar pelas ruas, sob pena de multa do 20$000.

Art. 68.  Quem tiver em casa algum alienado furioso deverá conserval-o recluso, ou providenciar sobre a sua remoção para o respectivo hospital; sob pena de 10$000 de multa.

Art. 69.  Os escravos encontrados nas ruas depois do toque de recolhida serão conduzidos pelas patrulhas á presença de seus senhores, ou de quem suas vezes fizer, e recolhidos á cadêa, se assim o exigirem (Resolução de número 93, 14 de maio de 1873).

 Veja-se ainda Foucault (2005), que correlaciona o louco e a fera na primeira modernidade.

[4] Filho de imigrantes alemães nascido em Juiz de Fora, passou toda a sua vida no Brasil. Foi jardineiro-chefe do Museu Nacional do Rio de Janeiro e trabalhou, em São Paulo, no Instituto Butantã e no Museu Paulista. Foi o fundador do Instituto de Botânica e do Jardim Botânico de São Paulo, este último sendo montado, desde 1928 (a inauguração oficial ocorreu só em 1938), em um terreno que viria a ser anos mais tarde vizinho do Jardim Zoológico de São Paulo. Ao longo de sua carreira, participou de diversas expedições de exploração científica e coleta vegetal em São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Amazonas, Paraná e Santa Catarina. Escreveu artigos científicos e de imprensa sobre desmatamento, reflorestamento, recuperação ambiental e unidades de conservação, entre outros temas. Foi um dos primeiros intelectuais brasileiros a defender a criação de “reservas genéticas da flora e da fauna” no país (Franco e Drummond, 2005).

[5] Um dos filhos de Carl Hagenbeck. A importância da família Hagenbeck para a história dos zoológicos será abordada no segundo capítulo. Curiosamente, a visita também é mencionada em uma entrevista com Agenor Gomes em 1946, que, no entanto, erra a data da visita, mencionando um ano em que Franco da Rocha já estava morto: “Hagenbeck, o homem que idealizou o melhor zoológico do mundo em Hamburgo, aqui esteve com Sergio Meira, Franco da Rocha e Rodolfo von Ihering, em 1934, estudou no Jaraguá, todas as condições para a montagem de um estabelecimento modelar (…) à Prefeitura foram encaminhados os projetos, estudou-se a papelada e esta desceu ao sarcófago do esquecimento. Hagenbeck seguiu para a Argentina e lá foi mais feliz em suas realizações” (Folha da Noite, 1 ago. 1946).

[6] O nome aparece em uma “Relação dos funcionários da Secretaria da Fazenda e do Thesouro do Estado” de São Paulo, de 1921, como 2º Sub-Procurador, com a data de admissão para o cargo em 4 de fevereiro de 1909 (Secretaria da Fazenda…, 1921:165); e também é mencionado na Revista do Museu Paulista de 1919 como tradutor para o português do artigo “Manguesaes de Santos”, de H. Luederwaldt. (Revista Do Museu Paulista, 1919: IV)

[7]Médico formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, especializou-se na área de urologia. Mais tarde foi eleito para a Academia de Letras de São Paulo (O Bisturi, 1941:1) e foi reitor da USP.

[8]Engenheiro pela Poli-USP, foi proprietário de uma empresa de projetos e construções, a Siciliano & Silva, especializando-se em obras de concreto armado (Ficher, 2005:93-94).

[9]Em algumas reportagens, observa-se a avaliação de que a preservação das matas poderia frear o desenvolvimento econômico do país. Vide o regimento do club zoológico do Brasil (criado em 1932), em que se previu o estímulo à proteção da fauna brasileira, “desde que isso não colida com o interesse da economia geral” (O Estado de S.Paulo, 10 fev. 1933). Dessa forma, é de se supor que a construção de um zoológico tivesse, aos olhos da época, a vantagem de conservar as matas, ao mesmo tempo em que tirava um benefício econômico delas.

[10] Alfred Agache  (1875 – 1959) esteve no Rio de Janeiro entre 1927 e 1930, onde ministrou palestras e elaborou a “primeira proposta de intervenção urbanística na cidade” (Rio de Janeiro, 2015). Segundo Oliveira, Agache defendeu a criação de grandes parques em seu plano urbano, com reservas florestais adentrando a cidade para trazer-lhe seu “ar fresco e puro afim de substituir o viciado” (2008:282). O plano de Agache pode ser lido na íntegra em: http://planourbano.rio.rj.gov.br/

[11] Personagem do livro Candide, de Voltaire, que possui a máxima:  “tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis”.

[12] Edição matutina da Folha da Noite.


Bibliografia